A
pergunta, assim feita, dá margem a muitas interpretações.
Se
uma pessoa sobe no palanque e faz a plateia aplaudir, podemos dizer que ela
fala bem. Nesse caso, ela convence, envolve, é carismática. Não importa se usou
português culto, não importa nem se foi 100% coerente ou lógica.
Já
em uma conferência acadêmica, ser carismático não sustenta uma tese mal
construída. Respeitar o método científico e ter cuidado com afirmações mal
embasadas é um jeito de falar bem nessa situação. A diferença entre um exemplo
e outro é o objetivo, o público, o sentido da comunicação.
Isso
também se aplica à escrita. Mas mesmo que o objetivo da escrita seja a
transmissão de ideias, quando se pergunta se alguém escreve bem, geralmente
vamos encontrar uma resposta um tanto limitada: escrever corretamente.
É
verdade que saber usar a norma culta ajuda a dar clareza e compreensão ao
texto. Mas não é exatamente ela que faz com que um texto seja bom. Depende
muito dos argumentos, do estilo da escrita e – por que não – do público a quem
ela é destinada. Então por que toda essa importância atribuída à norma culta?
Não
sou linguista, mas ensaio uma resposta: o domínio de um sistema e o hábito
linguístico de alguém sinalizam algumas coisas dentro de uma cultura. Pelo
jeito que alguém escreve e, em uma escala menor, pelo jeito que alguém fala,
identifica-se:
-
se a pessoa frequentou a escola
-
se teve uma educação de qualidade
-
quão bem associou as normas que lhe foram ensinadas
-
com quem costuma se comunicar
-
o quanto lê
-
o que lê
-
o quanto escreve
-
o que escreve
Aí
você pode dizer “ah, mas eu conheço uma pessoa que não frequentou a escola e
escreve muito bem!”. Sim, há exceções. Mas via de regra, pelo modo como alguém
se comunica dá pra “adivinhar” boa parte desses itens. E da mesma forma que as
pessoas se identificam, elas perpetuam esses laços pela língua.
Da
mesma forma que uma pessoa que só troca mensagens instantâneas com adolescentes
usando gíria não costuma ter interesse pelo que um acadêmico diz, aqueles que
tiveram uma experiência acadêmica, de leitura e de escrita que os levou a
dominar o português culto não costumam se interessar por quem não chegou nem
perto disso.
Isso
é normal - geralmente nos interessamos por trocar ideias com quem tem um background parecido com o nosso. Seria
lindo se as pessoas se dispusessem a ampliar seus horizontes e entender melhor
a cabeça de quem não pensa tão parecido, mas diante de um mundo de escolhas,
raros são os que se dispõem a fazer o mais desconfortável, o mais desafiador, o
mais incômodo. Falar com diferentes exige não apenas tolerância pelo que eles
pensam, mas resiliência para aceitar a rejeição que eles terão quando você
revelar que não é dali – às vezes, simplesmente pela língua.
Isso
constatado, poderíamos ir dormir tranquilos sabendo que o mundo é rico e que as
pessoas se comunicam entre si, mesmo que só entre os mais parecidos. Mas não
para por aí. Todos sabemos que existem consequências mais sérias para isso. As
provas que selecionam quem vai estudar de graça em boas universidades privilegiam
um grupo. Os concursos que preenchem as cadeiras em empregos públicos
privilegiam um grupo. E se é esse grupo que é sempre escolhido para estudar nas
melhores universidades e preencher os cargos públicos, qual é a perspectiva de
que esse cenário mude?
Quais
são as chances de que uma pessoa que não tem conversas com pessoas cultas escreva
uma redação exemplar e possa frequentar uma boa universidade? Quais são as
chances de que a clareza e a coerência sejam mais valorizadas do que a
ortografia? Quais são as chances de que a língua expresse a cultura de um povo,
e não apenas perpetue diferenças sociais?
São
questões que podem ser desanimadoras se pensarmos apenas em grandes meios de
comunicação. Desconfio, talvez de forma otimista demais, que a internet pode
dar mais voz a questões como essa e promover a tolerância e a compreensão entre
quem tem bases diferentes.
Desconfio,
de forma mais otimista ainda, que as pessoas conscientizadas podem começar a
trocar: ensinar a língua culta aos que querem se comunicar com quem a domina e
também passar a entender quem escreve diferente antes de automaticamente
condenar.
Desconfio
e torço para que sejamos menos reprodutores dos padrões sociais e mais
preocupados com quem compõe a sociedade.